VACINA E DESEJO, Por Marília Mader

Ontem foi dia de vacina. Embora eu não seja fã de ensinar crianças a tapar sentimentos com comida, a bravura dos três guerreirinhos, dois dos quais conseguiram deixar a agulha entrar e sair sem derramar uma só lágrima, merecia ser celebrada com guloseimas!

Antes de pegar o metrô de volta pra casa, cada um escolheu um chocolatinho. Diego babyssauro enfiou o dele inteiro na boca, babando um melado “bom, mamãe, booom”. Olívia partiu o dela ao meio, enrolou metade num guardanapo e comeu a outra devagar. Mais vale um pássaro na mão do que dois voando.

Murilo tentou imitar, mas não se aguentou e comeu tudo, devagar e sempre, até todos os pássaros-chocolate levantarem vôo até sua língua.

Olívia o observava salivando e mendigando as migalhas, com sua metade embrulhada bem segura entre os dedos. Eita que a bichinha decidiu que ontem era dia de suportar a dor e controlar o desejo, tudo na mesma viagem, num só crédito do bilhete único!

Chegou em casa e abriu o guardanapo. Cortou a metade do chocolate ao meio, comeu o quartinho devagar e enrolou o outro quartinho de novo para de manhã.

Hoje cedo, novamente cortou o quartinho ao meio, comeu um dos pedaços e enrolou o oitavinho pra depois, sofrida mas determinada.

Murakami, em seu livro sobre corrida, diz que a dor é inevitável, mas o sofrimento é opcional. Concordo. Mas controlar os próprios desejos é exercício anterior, muito mais complexo que suportar a dor.

Difícil, mas tão necessário, emergir desse grande aquário de hedonismo que é a primeira infância, dentro do qual muitos passam submersos até bem mais tarde na vida, e escolher em liberdade suportar dores sem sofrimentos e adiar desejos, seja pelo motivo que for.

Tarefa evolutiva imensamente humana: exercitar o livre arbítrio de escolher sucumbir ao desejo ou vencê-lo, chafurdar no sofrimento ou superá-lo, enfrentando em cada caso, de peito aberto as consequências: a dor e o prazer inerentes à decisão de cada passo. Que jamais será definitivo. Até que seja o último.

E quando acho que a lição do dia está feita, me chega o doce Murilo com o próximo desafio, o de sonhar desejos impossíveis: “mamãe, sabe o que eu queria? eu queria comer Lua”...

WhatSsapp